Enterro do estudante Edson Luis, assassinado pelos militares. Foto: Arquivo Nacional/Correio da manhã.
39% dos brasileiros dizem não confiar nos militares, conforme
pesquisa divulgada em fevereiro.
O Largo General Osório, na região da Santa Ifigênia, no Centro de São Paulo, abrigou um dos principais órgãos da repressão na ditadura militar brasileira (1964-1985). Ali funcionou o temido Deops-SP (Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo), ou apenas Dops, palco de prisões, torturas e assassinatos à margem da lei.
Seu chefe mais
conhecido foi Sérgio Paranhos Fleury, delegado da Polícia Civil e torturador
profissional. As execuções de Carlos Marighella e Carlos Lamarca, bem como a
Chacina da Lapa – que provocou a morte de três dirigentes nacionais do PCdoB –,
contaram com sua participação. Em 1º de maio de 1979, Fleury morreu afogado no
mar de Ilhabela, após cair de uma lancha.
Quem visita hoje o
número 66 do Largo General Osório não encontra mais uma instituição militar ou
policial – mas, sim, o Memorial da Resistência. A história do que ocorreu em
seus porões é contada agora pelo ponto de vista das vítimas, não dos algozes –
o que garante um raro e pujante exemplo de ressignificação histórica, em favor
da democracia.
O Forte de
Copacabana, instalado na ponta de uma das praias mais famosas do mundo, na zona
sul do Rio de Janeiro, não teve sorte igual. Foi lá que, em julho de 1922, a
Revolta dos 18 do Forte desnudou de vez as contradições da República Velha e
viu emergir o movimento tenentista.
Num ano já marcado
pela Semana de Arte Moderna (em fevereiro) e pela fundação do Partido Comunista
do Brasil (em março), a insurreição dos tenentes cariocas comprovava a
crescente inquietação no País. Novas revoltas tenentistas sobrevieram,
incluindo a épica Coluna Prestes. A agitação culminou na Revolução de 1930,
liderada por Getúlio Vargas, com o apoio dos tenentistas.
Mas quem vai hoje
ao Forte de Copacabana, a despeito da vista e do ambiente agradáveis, precisa
ter coragem. O Museu Histórico do Exército, construído em suas dependências,
espalha relatos laudatórios – e algumas mentiras – sobre o Exército brasileiro.
Dois episódios
sobressaem na narrativa militar: a Guerra do Paraguai e o Golpe de 64. Em
primeiro lugar, a caserna não usa tais nomenclaturas. O maior conflito armado
na América do Sul é chamado internamente de Guerra da Tríplice Aliança,
enquanto o golpe de Estado que derrubou o presidente João Goulart não passa de
um “movimento revolucionário” ou simplesmente “revolução”.
No caso da guerra,
tudo teria começado devido à tirania do presidente paraguaio, o
marechal-ditador Francisco Solano López, que ousara invadir o Mato Grosso.
Pouco se fala sobre os antecedentes desse suposto estopim, como a manobra
golpista que, com o apoio do Brasil, defenestrou Bernardo Prudencio Berro
(aliado de Lopez) da presidência do Uruguai. O fato de o Paraguai ser, à época,
um “emergente” econômico sem saída para o mar sequer é citado.
Tampouco se
mencionam os crimes de guerra cometidos pelo Exército brasileiro contra o povo,
em especial o genocídio sem precedentes na região. A Tríplice Aliança matou
cerca de 280 mil paraguaios, muito notadamente os homens – a população
masculina do Paraguai quase foi reduzida a pó. Havia localidades no país com 20
mulheres para cada homem.
Sobre o Golpe de
64, os guias do museu no Forte de Copacabana não se avexam de repetir ladainhas
de 59 anos atrás, como a suposta ameaça comunista representada pelo governo
João Goulart – a “república sindicalista de Jango”. Quem conhece o bê-á-bá do
movimento comunista no Brasil sabe que o início dos anos 1960 foi um período de
intensas divergências internas, tensões e cisões.
O museu frisa que a
quartelada teve o apoio dos empresários, da mídia, do Congresso, do STF
(Supremo Tribunal Federal), etc. Mas omite que, quando esse apoio se esvaiu, as
Forças Armadas ignoraram a opinião pública e apelaram a atos institucionais,
censura, cassações, fechamento do Congresso, intervenções no Judiciário,
prisões, mortes, etc., etc., etc.
Cinquenta e nove
anos depois, a narrativa do Golpe de 64 segue em disputa. O legado da ditadura
é criminoso, e não heroico. É um legado de medo e terror que a cúpula das Três
Forças teima vergonhosamente em negar, destruindo e ocultando documentos,
falseando a História e protegendo torturadores. Os quatro anos de governo Jair
Bolsonaro (PL) representaram uma espécie de recaída moral de parte dos
militares, que passaram a celebrar o Golpe de 1964 não como protocolo – mas
como uma inspiração.
As ameaças
autoritárias de Bolsonaro, a ocupação dos quarteis e de rodovias por
bolsonaristas extremados, o golpe frustrado de 8 de janeiro – nada disso teria
ocorrido sem a complacência desses setores das Forças Armadas. A população –
que tinha uma visão indulgente dos militares – agora se divide: 39% dos
brasileiros dizem não confiar neles, conforme pesquisa AtlasIntel divulgada em
1º de fevereiro passado.
Daí a sensatez do
comandante do Exército, Tomás Paiva, que ameaçou de punição todo e qualquer
militar da ativa que comemorasse nesta sexta-feira (31) a passagem dos 50 anos
do Golpe de 64. Daí o acerto do governo Lula em recriar a Comissão Especial de
Mortos e Desaparecidos, que foi esvaziada e depois extinta por Bolsonaro. A
ditadura acabou formalmente há 38 anos, mas sua memória segue viva e
assustadora, dentro e fora das Forças Armadas.
Fonte: Portal VERMELHO
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