Talvez sem volta
Se fosse preciso, para o combate à corrupção disseminada no Brasil,
aceitar nos Poderes algumas ilegalidades, prepotência e discriminações, seria
preferível a permanência tolerada da corrupção.
Os regimes autoritários são piores do que as ditaduras, ao manterem
aparências cínicas e falsos bons propósitos sociais e nacionais, que dificultam
a união de forças para destituí-los.
A corrupção é um crime, como é um crime o tráfico de drogas, como o
contrabando de armas é crime, como criminoso é –embora falte a coragem de
dizê-lo– o sistema carcerário permitido e mantido pelo Judiciário e pelos
Executivos estaduais. Mas ninguém apoiaria a adoção de um regime autoritário
para tentar a eliminação de qualquer desses crimes paralelos à corrupção.
A única perspectiva que o Brasil tem de encontrar-se com um futuro razoavelmente
civilizado, mais organizado e mais justo, considerado entre as nações
respeitáveis do mundo, é entregar-se sem concessões à consolidação das suas
instituições democráticas como descritas, palavra por palavra, pela
Constituição. Talvez estejamos vivendo a oportunidade final dessa perspectiva,
tamanhas são a profundidade e a extensão mal percebidas mas já atingidas pela
atual crise.
Apesar desse risco, mais do que admiti-las ou apoiá-las, estão sendo até
louvadas ilegalidades, arbitrariedades e atos de abuso, inclusive em meios de
comunicação, crescentes em número e gravidade.
Os excessos do juiz Sergio Moro, apontados no sensato editorial
“Protagonismo perigoso” da Folha (18.mar), e os da Lava Jato devem-se, em
grande parte, à irresponsabilidade de uns e à má informação da maioria que
incentivam prepotência e ódio porque não podem pedir sangue e morte, que é o
seu desejo.
Moro e seus apoiadores alegam que as gravações clandestinas foram legais
porque cobertas por (sua) ordem judicial, válida até 11h12 da quinta 17. Dilma
e Lula foram gravados às 13h32. Esta gravação sem cobertura judicial foi jogada
para culpa da telefônica. Mas quem a anexou como legal a um inquérito foi a PF,
em absoluta ilegalidade. E quem divulgou a gravação feita sem cobertura
judicial foi o juiz Sergio Moro, cerca de 16h20.
Na sua explicação que seguiu a divulgação, porém, Moro deixou a
evidência que desmonta seu alegado e inocentador desconhecimento daquele
“excedente” gravado. Ao pretender justificá-lo como informação aos governados
sobre “o que fazem os governantes” mesmo se “protegidos pelas sombras”,
comprovou que sabia da gravação sem cobertura ilegal, de quem estava nela e do
seu teor. E tornou-a pública, contra a proibição explícita da lei.
A ilegalidade foi ampliada com a divulgação, em meio às gravações, dos
telefones particulares e das conversas meramente pessoais, que Moro ouviu/leu
e, por lei, devia manter em reserva, como intimidades protegidas pela
Constituição. E jornais em que a publicação de pornografia e obscenidades está
liberada, para pasmo da memória de Roberto Marinho, atacam a “falta de decoro”
das conversas pessoais.
O STF decidiu desconectar as ações sobre contas externas de Eduardo
Cunha e de Cláudia Cruz: a dela foi entregue a Moro. No mensalão, em 38
julgados no STF só três tinham foro privilegiado. Os demais foram considerados
conexos.
Há duas semanas, o STF manteve em seu âmbito, como conexos, os processos
do senador Delcídio e o do seu advogado. Por que a decisão diferente para Cruz?
A incoerência não pode impedir suposições de influência da opinião pública, por
se tratar de Cunha e sua mulher.
Ainda no Supremo, Gilmar Mendes, a meio da semana, interrompeu uma
votação para mais um dos seus costumeiros e irados discursos contra Dilma, o
governo, Lula e o PT. Seja qual for a sua capacidade de isenção, se existe,
Mendes fez uma definição pessoal que o incompatibilizaria, em condições normais,
para julgar as ações. Assim era.
Muitos sustentam, como o advogado Ives Gandra, que “a gravação [a
ilegal] torna evidente que o intuito da nomeação [como ministro] foi proteger
Lula”, o que justificaria o impeachment.
Foi o mesmo intuito da medida provisória de FHC que deu ao
advogado-geral da União título de ministro para proteger Mendes, com foro
especial, contra ações judiciais em primeira instância. Uns poucos exemplos já
mostram a dimensão do que se está arruinando no Brasil, talvez sem volta.
*Via Viomundo