Os jogos em torno do impeachment não
são de fácil diagnóstico. Que existe um movimento articulado, não se discute.
Mas existem também tendências internacionais, estados de espírito internos que
induzem as pessoas a certas atitudes, de tal maneira que se torna difícil
separar o que é conspiração ou tendência induzida pelas circunstâncias
históricas.
É
evidente que a conspiração atua sobre as características políticas do momento.
Mas nem todos que endossam esse movimento agem com intenção conspiratória. Meramente
seguem tendências tornando-se massa de manobra.
Para
facilitar o raciocínio, vamos separar as principais peças do jogo para tentar
remontá-las mais adiante.
Primeiro
conjunto: as tendências internacionais
A
institucionalização da bestificação do discurso político não é meramente uma
obra da mídia. Grupos de mídia são empresas comerciais, com interesses
econômicos claros, que atuam quase sempre pró-ciclicamente — isto é, acentuando
os movimentos de opinião pública.
Mas
não são meros agentes passivos. Em tempos de alta intolerância, o poder dos
grupos de mídia se potencializa. Com os ânimos exaltados, os nervos
desencapados, a opinião pública fica muito mais suscetível à manipulação.
Quebram-se os filtros da verossimilhança, qualquer denúncia cola, avultam as
teorias conspiratórias e consegue-se manipular o estouro da boiada através da
recriação de alguns mitos históricos, como o do inimigo externo, das ameaças
insondáveis à família, do castigo eterno aos ímpios e outros mitos que, tendo
como pano de fundo a superstição, alimentaram os piores episódios de
intolerância do século 20.
É
quando a besta — esse sentimento de intolerância massificado — sai da jaula a
passa a ser tangida por palavras de ordem emanadas da mídia ou de lideranças
populares. Aí, a mídia adquire poder de vida e de morte sobre personalidades
públicas. Vide o macarthismo, o uso da informação de massa pelo fascismo ou,
mesmo sem o modelo de mídia ocidental, mas navegando nas mesmas águas da
intolerância, a revolução cultural chinesa.
Os fatores de intolerância
Se
não é um fenômeno estritamente brasileiro, o que caracterizaria, então, a
universalização atual dessas ondas de intolerância?
Está-se
em um quadro claro de falência do modelo de economia liberal, que começa em
1972, e de democracia representativa que vigorou em todo século 20.
Nos
modelos democráticos, o equilíbrio geral — econômico, social e político — é uma
percepção criada pelo trabalho articulado entre quatro setores — Executivo,
Legislativo, Judiciário e Mídia —, por um quadro econômico estável, e com
válvulas de escape permitindo administrar os conflitos internos, com relativa
abertura para processos lentos de inclusão.
A
crise de 2008 matou a utopia e trouxe à tona diversos elementos
desestabilizadores, como a insegurança econômica e o medo de perda de status
social.
A
globalização e os grandes movimentos de inclusão trouxeram uma nova população
invadindo os mercados de consumo, de lazer, de educação e de opinião. Enquanto
o mito econômico se sustentou, foi mais fácil administrar as intolerâncias e
preconceitos em relação aos “invasores”. Com a crise e o fim das ilusões, a
busca de bodes expiatórios foi bater nas costas dos imigrantes e dos novos
incluídos, muito mais concretos para atiçar o primarismo da besta do que
movimentos financeiros sofisticados ou as grandes jogadas empresariais.
Somou-se
o desmantelamento dos sistemas tradicionais de mídia. O sistema que vigorou no
século, a não ser nas fases iniciais da era do rádio, embora alimentasse a
intolerância, funcionava também como descarrego das manifestações individuais
de seus leitores.
Houve
então um estilhaçamento de todas as formas de coordenação e controle da opinião
pública em um momento de conflitos étnicos e de ódio interno nos países. A
besta arrebentou as grades e invadiu as ruas, as cidades, até as conversas de
família.
Principalmente,
comprometeu radicalmente um dos elementos centrais dos pactos democráticos: a
hipocrisia da democracia representativa.
O
primado da separação de poderes criou um conjunto de freios ao poder absoluto.
E a ideia genérica de que “todos são iguais perante a lei” legitimou o modelo.
Além disso, abriu espaço para a assimilação lenta e gradual das políticas de
inclusão, que deveriam acompanhar sempre o pensamento médio nacional.
Cada
grupo social precisava, antes, expandir suas ideias, viabilizar-se politicamente
para, mais à frente, inserir seus princípios nas leis e na política.
Esse
modelo gradual, garantiu a disciplina das chamadas massas, mantendo sob
controle as disputas de classe e permitindo a prevalência do poder econômico em
todas as instâncias, em alguns casos amenizado por um conjunto de regramentos.
Na
política, o poder econômico avançou através dos financiamentos de campanha. No
dia-a-dia da economia tornaram-se os parceiros mais influentes de todos os
presidentes. Nos Estados Unidos, levaram à guerra contra a Espanha, em fins do
século 19, à guerra contra o Iraque, no século 21. No Brasil, FHC buscou seus
aliados junto ao setor financeiro; Lula, junto aos grandes grupos da economia
real.
A
própria prestação da Justiça desdobrou-se em várias formas de proteção aos
poderosos, das apelações infindáveis às diversas maneiras de interpretar o
“garantismo” — a defesa das garantias individuais — dependendo de grandes
escritórios de advocacia. Em alguns casos, como nos EUA, em nome do interesse
nacional foi conferido até direito do Presidente da República conceder indulto
a crimes econômicos praticados.
Essa
mesma parceria manifestou-se em relação à mídia, com os diversos modelos de
financiamento dos grupos de mídia subordinando-os a interesses de grupos.
Apenas
nas eleições o eleitor tinha condições de se manifestar. Mesmo assim,
submetidos a formas variadas de controle e manipulação da informação.
Todo
esse aparato institucional visava criar uma mediação e controle das demandas
públicas. E nem se julgue essa constatação um fator totalmente negativo: não há
nada pior para um país ou uma comunidade que uma opinião pública descontrolada,
reagindo aos estímulos de líderes de torcida.
Esse
mundo desabou.
Em
cima da decepção com o modelo democrático, vieram as novas formas de
comunicação das redes sociais, passando a ilusão da democracia direta em todas
as instâncias.
Nas
ruas, o grito sem a mediação dos partidos e da mídia. No mercado de opinião, a
atoarda das redes sociais, nas quais a mídia é apenas um perfil a mais, com
seus seguidores. Na Justiça, a busca do justiçamento, a justiça com as próprias
mãos e a interpretação de que toda forma de garantismo como maneira de livrar
os poderosos dos rigores da lei.
Em
cada escaninho de poder, cada detentor de poder, pequeno, médio ou grande, se
julgou com liberdade para exercitar seu voluntarismo. O descarrilhamento das
estruturas de poder se dá para fora e para dentro.
Nesse
quadro, dois personagens emergiram exercitando uma violência descontrolada: os
grupos de mídia, atropelados pelas novas formas de comunicação; e a oposição
aos governos que conseguiram montar políticas vitoriosas de inclusão.
Essas
políticas geraram novos consumidores, mas também novos cidadãos. O partido que
patrocina a inclusão ganhou uma massa de votos imbatível, levando a oposição a
uma luta extra-eleitoral encarniçada para se manter no jogo. E as armas
principais às quais têm recorrido, seja na Fox News, seja na Veja, é a
exploração radical da intolerância existente na sociedade.
Segundo
conjunto: o caso brasileiro
O
caso brasileiro foi montado em cima dessas características globais atuais
acrescidas das particularidades internas. Alguns dos episódios condicionantes
do momento:
1.
Roberto Civita importa dos EUA o estilo escatológico de Rupert Murdock. Em 2005
há o pacto dos grupos de mídia para enfrentar a globalização do setor. A
campanha pró-armamento descobre um mercado promissor na exploração do discurso
do ódio e em uma nova direita que nascia.
2.
A enorme inclusão social ocorrida na última década, cujos conflitos foram
amenizados pela fase de bonança econômica, explodem com o fim da bonança
mundial dos commodities e os erros políticos e econômicos cometidos por Dilma
em 2014 e 2015.
3.
O desmonte da base de apoio do período Lula, mas a corrosão na popularidade da
presidente, abrem uma vulnerabilidade inédita no Executivo.
4.
Antes disso, a cobertura intensiva do julgamento do “mensalão”, visando
obscurecer a CPMI de Cachoeira, testando pela primeira vez a massificação das
denúncias de corrupção de forma continuada. A campanha do “mensalão” ajudou a
fixar na classe média a ideia de que a corrupção estava no PT e a solução, no
seu extermínio.
Criou-se
o clima adequado para os grandes movimentos de manada.
A
ira difusa em relação ao desconforto atual, ao sistema político, à lentidão do
Judiciário, tudo isto é canalizado contra o governo. E a Lava Jato bateu na
imensa mina de corrupção montada em torno da Petrobras e amplificou os ecos não
esquecidos do mensalão.
A
disfuncionalidade política, de governo e oposição, a desconfiança em relação ao
Judiciário (especialmente após a frustração das Operações Satiagraha e Castelo
de Areia) ampliaram os movimentos de ação direta, nas ruas.
Terceiro
conjunto: a orquestração política
Desse
conjunto de fatores germinaram as ações radicalizantes que passamos a analisar
a seguir.
Na
análise sobre os personagens envolvidos, haverá certa dificuldade em
identificar as movimentações.
Para
facilitar o raciocínio, vamos dividi-los em três grupos principais:
1.
Aqueles cujo fator mobilizante é a indignação pura e simples. Entram aí
movimentos de rua.
2.
O grupo motivado pela disputa corporativa por espaço político. Inserem-se aí
procuradores, delegados, juízes de primeira instância, técnicos do TCU
(Tribunal de Contas da União)
3.
E há o terceiro grupo, o dos conspiradores efetivos, manobrando as
circunstâncias do momento.
Para
nossa análise, interessa identificar esse terceiro grupo.
Os
pontos que chamam a atenção, por induzir a uma ação concertada são os
seguintes, tendo como instrumento de guerra a parceria mídia-Lava Jato:
1.
A estratégia jurídica
A
perfeita coordenação entre as estratégias de Gilmar Mendes e Dias Toffoli no
TSE e Sérgio Moro na Lava Jato — de encontrar indícios para criminalizar o
caixa 1 da campanha de Dilma.
A
concatenação entre a Lava Jato e a Zelotes é outro indício de atuação
coordenada.
Além
disso, a maneira como um juiz de Primeira Instância, no Paraná, conseguiu
deflagrar a mais abrangente operação criminal brasileira cujo único elo com sua
jurisdição era um doleiro que já tivera os benefícios da delação premiada e
voltara a prevaricar.
2.
A estratégia política.
A
concatenação entre o fluxo de vazamentos da Lava Jato e as estratégias
pró-impeachment da oposição.
A
blindagem aos nomes de oposição que surgem nas delações premiadas.
Em
momentos mais críticos, a Lava Jato providencia um fluxo maior de factoides
destinados a estimular a opinião pública.
3.
A estratégia econômica.
Um
viés totalmente internacionalizante, no âmbito do Congresso — toda vez que o
governo entra em sinuca, a saída apresentada consiste na flexibilização da Lei
do Petróleo e das políticas sociais — e no âmbito da própria Lava Jato e do
Ministério Público Federal através dos acordos de cooperação internacional.
Parece haver um trabalho articulado para atingir setores de interesse direto
dos Estados Unidos: Petrobras com a lei do petróleo, empreiteiras brasileiras
(que se tornaram competitivas internacionalmente) e setor eletronuclear.
Na
visita do PGR a Washington, por exemplo, levou informações contra a Petrobras e
trouxe informações de escândalos na Eletronuclear. Há um ataque sem quartel a
todas as políticas visando fortalecer a economia interna, da mesma maneira que
na Operação Mãos Limpas.
A
ideologia do jogo — expresso não apenas na oposição, na Lava Jato e na própria
Procuradoria Geral da República, através da chamada cooperação internacional —
é a do internacionalismo. A corrupção é decorrência de uma economia fechada. O
mercado liberta, o Estado corrompe.
A
não ser os grupos ligados a direitos humanos, o grosso dos procuradores
provavelmente esposa essa visão reducionista de mercado.
Os
personagens do jogo
Os
personagens do jogo serão analisados com base nas informações que tenho sobre eles
e nas impressões deixadas pela forma como estão jogando.
Há
alguns pontos centrais de articulação — como o Instituto Milenium, que continua
cumprindo à altura seu papel de sucessor do velho IBAD (Instituto Brasileiro de
Ação Democrática). Fora ele, não há sinais de locais mais expressivos de
articulação.
Entendidos
esses aspectos do jogo, vamos aos jogadores.
Congresso
Há
um conjunto de personagens secundários que ganharam visibilidade por ecoar a
intolerância. Políticos como Carlos Sampaio, Mendonça Neto, Agripino Maia,
Aloisio Nunes, Ronaldo Caiado, Roberto Freire, vociferantes, mas personagens
menores que apenas. Os amadores aparecem mais; os profissionais se preservam.
São
quatro os personagens a serem analisados.
O
primeiro deles é Aécio Neves, o candidato do PSDB nas últimas eleições
presidenciais. Tem importância apenas pelo recall das últimas eleições.
É
politicamente inexpressivo, incapaz sequer de articular de forma consistente
interesses mais complexos.
É
candidato a um indiciamento próximo por duas razões: em algum momento o MPF
terá que mostrar isenção e a cada dia se avolumam mais evidências contra ele. A
segunda razão é que ele se tornou uma liderança disfuncional, incapaz de
articular um corpo mínimo de ideias e estratégias.
O
grupo profissional tem três elementos: Michel Temer, Renan Calheiros e José
Serra.
No
curto espaço de tempo em que se tornou protagonista político, Temer não
demonstrou maior envergadura política. Encampou a tal agenda liberal, surgiu no
horizonte político e desapareceu como um cometa fugaz.
Renan
é político com uma concepção muito mais sólida de poder. Fareja como ninguém os
centros de poder e sabe agir com rigor e objetividade. Provavelmente sua
aproximação com a agenda liberal e com as mudanças na lei do petróleo se
prendam a essa percepção mais apurada sobre poder. Sob ameaça da Lava Jato,
como estratégia de sobrevivência tratou de se aproximar do foco mais influente
do poder.
José
Serra é o grande articulador. É o político que transita pelos grandes grupos
internacionais — lembrem-se do Wikileaks com ele prometendo à lobista da
indústria petrolífera flexibilizar a lei do petróleo assim que eleito. Transita
também pela mídia e pelo submundo do Judiciário — Polícia Federal e
procuradores, com os quais montou uma verdadeira indústria de dossiês.
Justiça
Os
dois personagens centrais dessa articulação são Gilmar Mendes no STF (Supremo
Tribunal Federal) e no TSE (Tribunal Superior Eleitoral) e Sérgio Moro na Lava
Jato. São os grandes estrategistas que provavelmente estreitaram relações entre
si durante o julgamento do “mensalão”.
Suas
estratégias se completam, assim como o recurso recorrente à mídia, Gilmar em
episódios ostensivamente manipulados, como o grampo sem áudio, o grampo no
Supremo ou o encontro com Lula, factoides que explodiam e desapareciam como
fogo fátuo; Moro de forma profissional, abastecendo a mídia com jorros
ininterruptos de notícias e factoides.
As
ligações históricas de Gilmar com José Serra, o trabalho de cooptação de Dias
Toffoli, seu trabalho pertinaz no STF e TSE, o colocam como personagem central
da conspiração. O que, convenhamos, não chega a ser nenhuma novidade.
A
Força Tarefa da Lava Jato, Moro, os procuradores e delegados, são o epicentro
operacional dessas articulações. Mas não conseguiram disfarçar a posição
ostensivamente partidária. Já viraram o fio há algum tempo.
Já
o problema do MPF é muito mais o de perda de controle sobre os jovens
procuradores, devido ao fato do Procurador Geral Rodrigo Janot responder à sua
base, e não à presidência da República, como determina a Constituição.
Há
três fatores que afetam a imagem do MPF como um todo.
Um
deles, as entrevistas políticas do procurador falastrão, Carlos
Fernando dos Santos Lima. O segundo, a excessiva politização do MPF do
Distrito Federal. O terceiro, o exibicionismo de jovens procuradores, tentando
de todas as formas se habilitar aos holofotes da mídia através de
representações estapafúrdias.
Mesmo
a maneira como se insere na cooperação internacional — na qual é patente o
alinhamento com interesses dos Estados Unidos — parece muito mais falta de
reflexão interna sobre os aspectos geopolíticos da cooperação, do que qualquer
postura conspiratória.
Quanto
a Janot, em que pese a blindagem de Aécio Neves, é uma figura pública
respeitável, preso a esses dilemas entre garantir a legalidade e, ao mesmo
tempo, não remar contra o sentimento de onipotência que acometeu a categoria,
após a Lava Jato.
Mídia
Aí
se concentra o poder maior, que está na Globo. Veja, Folha e Estadão são
apenas agentes auxiliares, que fornecem as pautas para o Jornal Nacional.