Um morador de rua tenta se proteger do frio nos EUA - Foto: Karen Bleirer/AFP
Por Emir Sader*
Uma sociedade democrática é aquela em que todos têm acesso a direitos, independentemente de idade, cor, sexo ou identidade sexual. E esse acesso não depende apenas de esforço individual.
Nos Estados Unidos não se costuma dizer que há
pobres. O que existe seriam “fracassados”. Eles se consideram uma sociedade
aberta, livre, em que todos têm suas oportunidades. Os que não as aproveitam,
fracassam, vão para baixo da pirâmide. A categoria chave ali é “oportunidade”.
O caráter democrático da sociedade seria dado pela possibilidade que todo mundo
teria de subir na escala social e o risco que todos teriam de descer. É uma
sociedade fundada no mercado, a gangorra pela qual alguns sobem, outros descem.
Mas a categoria “oportunidade”
é enganosa. Pode parecer que democratizar uma sociedade é dar oportunidade para
todos. Uma belíssima propaganda do Lula em uma de suas campanhas presidenciais
era a imagem de um jovem bradando por oportunidades. E, de alguma forma,
dependendo de como a interpretemos, se pode definir democracia como
oportunidade para todos.
Mas as sociedades de mercado
inviabilizam que as oportunidades sejam igualmente para todos. Há poucos anos o
PP, o partido da direita espanhola, na Catalunha, usou como lema da sua
campanha “não há para todos”. É uma confissão sincera do caráter malthusianista
das sociedades neoliberais, em que há lugar apenas para alguns.
Na realidade a categoria chave
de uma sociedade democrática é a de direitos, direitos para todos. Todos,
independentemente da idade, da cor da pele, da identidade sexual, de qualquer
outro tipo de opção, têm direitos. Uma sociedade democrática é aquela em que
todos têm todos os direitos.
As últimas eleições
brasileiras tiveram uma dura polarização entre um eleitorado que votou pelas
políticas sociais do governo que mudaram suas vidas e um que, mesmo tendo
vivido essas mudanças, teve sua consciência formada pelos grandes meios
monopolistas de comunicação. Nos grandes centros urbanos do centro-sul do
Brasil, a votação a favor do candidato da oposição chegou próximo a dois
terços. Provavelmente metade de sua votação em todo o Brasil foi composta de
votos populares.
Foi uma polarização entre
políticas sociais e formação da opinião pública. Nas regiões em que as
transformações das condições de vida foram muito profundas – como o Nordeste –,
Dilma teve sempre mais de 70%. Mas o governo perdeu a disputa na formação da
opinião pública e quase termina o processo político iniciado em 2003 porque não
se avançou praticamente nada na democratização dos meios de comunicação, e se
segue permitindo um massacre por parte desses meios.
A política social solidária e
humanista, que estendeu os direitos a muitos milhões de brasileiros que antes
nunca tinham sido contemplados nas suas necessidades fundamentais, não foi
acompanhada da formação da consciência social dessa mesma população. Uma visão
tecnocrata supunha que bastaria pôr em prática políticas que beneficiam a
população para se ter o apoio dela. Sem se dar conta de que, entre a realidade
concreta vivida e a consciência das pessoas, se interpõem os mecanismos de
formação dessa consciência – no nosso caso, os grandes meios de comunicação.
Caso fosse julgada apenas pelo
que fez no seu primeiro mandato, Dilma tinha todas as condições de ser reeleita
no primeiro turno. Se computamos os beneficiários das políticas sociais, essa
possibilidade só se reforçaria. Mas não houve mecanismos de formação da
consciência social desses milhões de pessoas, que votaram pela sua intuição ou
foram ludibriados pelos mecanismos reiterativos dos meios de comunicação.
Se chegar a desenvolver
mecanismos que favoreçam essa consciência – responsabilidade dos que desenvolvem
as políticas sociais, mas também de todas as organizações sociais, políticas e
culturais do campo popular –, o processo de transformações iniciado há mais de
12 anos se tornará consolidado e irreversível. Isso se dará quando a massa da
população entender que acesso a direitos não é questão apenas de esforço
individual.
*É
sociólogo, cientista político brasileiro e blogueiro.
Fonte: Portal Vermelho