Fragilizado o governo, fragilizadas as estruturas partidárias
de esquerda, o ex-presidente Lula se afigura como o último obstáculo a
esse projeto. Precisa, pois, ser removido do caminho. Por isso mesmo foi
condenado pelo tribunal de exceção da grande imprensa.
“Quando se me impõe a solução de um caso jurídico ou moral, não me
detenho em sondar a direção das correntes que me cercam: volto-me para
dentro de mim mesmo e dou livremente a minha opinião, agrade ou
desagrade a minorias ou maiorias”.
Estas palavras são de Rui Barbosa, em carta dirigida a Evaristo de
Morais, o grande advogado, incitando-o a assumir a defesa de José Mendes
Tavares, réu previamente condenado pelo que então se chamava de
‘opinião pública’. Trata-se, como se vê, de lição extremamente atual,
quando o STF de nossos dias assume a responsabilidade de violar a
Constituição brasileira sob a alegativa de estar atendendo ao ‘clamor
das ruas’.
Refiro-me à decisão de liberar a execução da pena de prisão após
condenação confirmada em segundo grau, ao arrepio do ditado claro da
Constituição (Art. 5º, LVII): “ninguém será considerado culpado até o
trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Legalizando a prisão antes de definitivamente estabelecida a
culpabilidade do acusado, o STF torna-se agente de um direito criminal
promotorial, penalista, punitivista, reacionário, atrasado.
Caminhando na contramão da moderna criminologia, torna-se caudatário
do conservadorismo e se faz instrumento do processo em curso de
regressão política que visa à construção de um Estado autoritário,
promovido ideologicamente pela grande imprensa.
Só o direito do arbítrio, o direito da força que anula a força do
direito, pode autorizar, como acaba de fazer o STF, a execução da pena
cerceadora de liberdade enquanto ainda se duvida se o acusado é culpado
ou inocente.
A prisão, nessas circunstâncias, deixa de ser o ato final de um
processo condenatório para transformar-se no momento inaugural das
investigações, que se abrem não para apurar fatos e responsabilidades,
mas para provar a culpabilidade do acusado escolhido para ser condenado.
Nesse contexto, a ‘delação premiada’ é instrumento de barganha que a
autoridade investigadora manipula a fim de obter do acusado preso não
necessariamente a apuração de possível crime, mas a revelação
selecionada de acusações contra quem a investigação quer condenar.
Alegar, como justificativa dessa agressão jurídica, a audiência das ruas, é, no mínimo, um escárnio.
Nas ruas de Berlim sob o nazismo multidões ensandecidas julgavam e
puniam seus adversários. Turbas envenenadas pela propaganda estimulavam a
perseguição aos dissidentes, condenados aos campos de concentração,
independentemente de culpa, mas simplesmente por serem judeus,
comunistas ou homossexuais.
No vestibular da Guerra Fria o macarthismo, sem precisar refazer a
Constituição ou as leis, instalou nos EUA a perseguição política e o
terror, em nome de um nacionalismo xenófobo e de um anticomunismo de
indústria.
Aqui, a implantação da última ditadura, em 1964, foi precedida de
maciça mobilização da opinião pública, levada a cabo pela imprensa,
animadora das marchas ‘com Deus pela liberdade’.
Esse especioso ‘clamor das ruas’ é o outro lado do discurso único de
uma imprensa monopolizada, unificada pelo ódio, pela vindita e pelo
projeto comum de poder, aquele poder reiteradamente negado às forças
conservadoras pelo processo eleitoral.
É essa imprensa, poderosíssima, que escolhe as vítimas e seus
protegidos, que elege os inimigos públicos escolhendo-os entre seus
adversários de classe, elege os réus e os julgadores e aos julgadores
dita as penas a serem aplicadas, independentemente do aparato normativo,
porque na sua aplicação é sempre possível torcer e distorcer a lei, ou
criar doutrina nova, como a teoria do domínio do fato, ou refazer-se a
jurisprudência, segundo o víeis de maiorias ocasionais.
Essa coalizão de direita dirige a política, dita a pauta do governo
em minoria legislativa e popular para o que tem sido decisiva a oposição
midiática. Essa coalizão dita o discurso oposicionista que impõe ao
governo o receituário do neoliberalismo.
Essa coalizão comanda a privatização e a desnacionalização, põe de
joelhos um Congresso que tem em Renan Calheiros e Eduardo Cunha, seus
líderes, o melhor indicador de sua decadência e de seu descompromisso
com a sociedade, a ética e o País.
De costas para os interesses das grandes massas, cuja emergência
política tira-lhe o sono, a classe dominante, despida da legitimidade da
soberania popular, impõe seus interesses sobre os interesses da nação e
do País.
A cantilena reacionária dos meios de comunicação é um de seus
instrumentos de dominação, o mais eficaz quando se trata da luta
ideológica. Foi assim no enfrentamento ao governo Vargas, foi assim na
campanha contra Jango e o pleito das reformas de base, foi assim contra
Lula e é assim contra Dilma. Foi assim e pelos mesmos motivos a
destruição de Leonel Brizola, empreendida pelo sistema Globo.
O projeto de hoje é a institucionalização da exceção
jurídico-política dentro da ordem formalmente democrática. Estamos nas
primícias de uma inflexão autoritária declarada contra os interesses
populares e a soberania nacional.
Daí a necessidade de destruir as organizações populares de esquerda e
seus ícones, se possível desmoralizando-os moralmente diante da
sociedade que sempre os respaldou.
Daí o concerto de ações. Para levar a classe-média a defender os
interesses das elites, a estratégia política é a de sempre: jogar as
lideranças de esquerda na vala comum da corrupção onde o capitalismo se
banqueteou e se banqueteia.
Eis por que, a serviço desse poder sem peias, sem limites éticos ou
legais, as estruturas estatais – os órgãos de investigação, a polícia,
os ministérios públicos, as instâncias judiciais, os juízes de primeira
instância e os tribunais superiores, a receita federal etc. – têm, hoje,
uma só missão: provar que Luiz Inácio Lula da Silva é um político
corrupto. desconstrução do líder popular integra o projeto que
compreende a deposição da presidente, a destruição do PT e, a partir
dela, a destruição e desmoralização das esquerdas brasileiras.
Assim estará aberto o caminho para a tomada do poder pela direita,
pelo conservadorismo, pelo atraso, pelo fundamentalismo político,
revogando ou reduzindo as conquistas sociais e derruindo a soberania
nacional com a retomada do entreguismo e da onda das privatizações a
serviço da desnacionalização: já agora, ante a passividade de um governo
fragilizado, os mais lucrativos ativos da Petrobras (entre eles poços
em atividade) são vendidos na bacia das almas e o Senado intenta doar o
pré-sal – promessa de nosso desenvolvimento autônomo – às grandes
petroleiras multinacionais.
A mudança política desta feita é operada sem golpe de Estado
clássico, sem apelo às armas, sem nova ordem constitucional, sem novos
atos institucionais. Ao contrário, efetiva-se sob o império da mesma
Constituição (mas reinterpretando-a), com o mesmo direito (mas
reinventando-o) mediante ‘interpretações criadoras’ como o ‘domínio do
fato’.
O Brasil é, presentemente, um experimento de tomada do poder por
dentro do poder, uma tomada do governo por dentro do governo, sem apelo à
violência, sem ruptura constitucional, respeitada a legalidade
(reinterpretada) e dentro de seus limites formais.
Esta operação depende diretamente da fragilização da presidente
Dilma, e conta com seu recuo politico. As seguidas tentativas de
impeachment e a resistência do Congresso à sua política servem a esse
propósito. Mas não é tudo. A direita pensa longe. Ela vislumbra 2018 e
alimenta esperanças de sucesso eleitoral. Trata-se, agora, já, de
inviabilizar o eventual retorno do ‘sapo barbudo’.
Fragilizado o governo, fragilizadas as estruturas partidárias de
esquerda, o ex-presidente Lula se afigura como o último obstáculo a esse
projeto. Precisa, pois, ser removido do caminho. Por isso mesmo foi
condenado pelo tribunal de exceção da grande imprensa.
Por isso, sua vida está sendo violentamente invadida, exposta, num
processo de humilhação a que nenhum outro homem público foi submetido
até hoje. Se afinal nada for comprovado, nenhum problema, pois a pena
previamente ditada já terá sido aplicada, mediante a execração pública a
que está sendo submetido o ex-presidente.
Esta operação, em curso, conta com o recuo, via intimidação, do
ex-presidente. Está, pois, em suas mãos o que fazer, e só lhe resta a
mobilização das massas. O Lula acuado é presa dócil. Nas ruas é promessa
de luta, resistência e avanço. Foi assim que em 2005 transformou uma
cassação iminente na consagração eleitoral de 2006.
A escolha agora é dele: sucumbir sem glória, ou encarnar a
resistência à destruição da proposta de fazer do Brasil uma nação
soberana, desenvolvida e socialmente inclusiva.
Roberto Amaral.