
Tânia Rêgo / Agência Brasil/Fotos Públicas
Desde que foi
anunciada a reforma do Ensino Médio pelo governo de Michel Temer, por meio da
Medida Provisória 746, tenho lembrado com muita frequência da observação da
pensadora Hannah Arendt (1906-1975), contida em seu único texto dedicado
especificamente ao tema da educação.
Por Adriano
Correia*, na Carta Capital
Intitulado A crise
na educação e reunido na obra Entre o passado e o futuro (Perspectiva), Arendt
tece uma consideração basilar sobre o sentido da formação que transcrevo na
íntegra:
“A educação é o
ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a
responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria
inevitável não fosse a renovação e a vinda dos novos e dos jovens.
A educação é,
também, onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não
expulsá-las de nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos, e tampouco
arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e
imprevista par nós, preparando-as em vez disso com antecedência para a tarefa
de renovar um mundo comum”.
Haveria um vínculo
estreito, portanto, entre educação e responsabilidade, tanto para com a
renovação do mundo quanto com o acolhimento dos mais jovens nele.
Na insistente
propaganda em favor da reforma, o Ministério da Educação busca convencer os
jovens de que a razão de ser da MP é a liberdade de escolha.
Isto é, a
flexibilização do currículo, de modo que o estudante possa decidir estudar
apenas o que gosta – e, principalmente, não estudar o que aos 13 anos acha que
não gosta.
O argumento
consiste, portanto, em afirmar que o Ensino Médio precisa ser modificado com
urgência (uma vez que tal modificação foi proposta por medida provisória) e sem
necessidade de discussão com a comunidade envolvida (estudantes, pais e
professores), já que seria consenso que ele precisa ser tornado atraente para
que os jovens não evadam da escola.
Seria o caso de o
Ministério da Educação indicar com base em que informações chegou à conclusão
de que a evasão escolar no nível médio se deve ao desinteresse dos estudantes
pelos conteúdos que têm de estudar.
As medidas do atual
governo para a área da educação até agora consistiram em corte de gastos, teto
orçamentário e desvinculação de receitas, mitigação da assistência estudantil
universitária, projeto de reforma do Enem (com dissociação do exame do acesso à
universidade) e a medida provisória que visa reformar o Ensino Médio.
A última, com
flexibilização do currículo, eliminação de disciplinas, ampliação da carga
horária visando o ensino integral (milagrosamente com restrição orçamentária),
ênfase em formação técnica e a admissão por “notório saber” de profissionais
não formados para a docência.
Este conjunto de
medidas, a ausência de qualquer projeto de valorização profissional do
professor e a fragilidade da argumentação em favor da medida provisória provoca
para a seguinte questão: o que está realmente em jogo?
As motivações mais
profundas dessas medidas estão explicitadas? Ou, para dizer com Kant: será que
as reais motivações para a reforma poderiam ser ditas em público (podendo ser,
assim, política, jurídica e moralmente justificáveis)?
O Ensino Médio é
parte da educação básica, e esta formação inclui, dentre outros aspectos o
acesso a conhecimentos que permitam uma maior compreensão de sua existência e
de seu lugar na vida social e política e a iniciação da preparação para uma
futura atividade profissional, sem restrição à possibilidade de aprofundamento
da formação em nível universitário.
Além do fornecimento
de condições para que o estudante não seja privado do que foi engendrado ao
longo do tempo nas ciências, nas técnicas, nas artes, no pensamento, na
história.
Subjaz à exigência
de uma formação básica o princípio republicano de que a comunidade política
deve fornecer aos estudantes as condições elementares para construírem sua vida
em pluralidade, de modo esclarecido e refletido, em harmonia com sua dignidade
pessoal e com sua condição de cidadão.
É o caso, portanto,
de não dissimular como liberdade o que é restrição e de não expulsar os mais
jovens da comunidade política e de cultura de que fazem parte deliberada ou
involuntariamente, independentemente das prioridades definidas por seus afetos
adolescentes – os quais, como bem sabem os professores e pais, deveriam ser
tomados como parte da sua formação no período da educação básica.
Seria apenas
irresponsável ou dissimulador considerar bem compreendidos, para dizer com
Tocqueville, os interesses próprios dos adolescentes que ingressam no Ensino
Médio. A chance de uma opção equivocada por um itinerário formativo aumentar a
evasão tem de ser levada muito a sério.
É muito difícil
imaginar como estes objetivos poderiam ser alcançados plenamente sem que os
estudantes sejam formados em Língua Portuguesa, Matemática e Língua
Estrangeira, mas também História, Artes, Geografia, Educação física, Sociologia
e Filosofia.
Filosofia x
obscurantismo
Tratando
especificamente da Filosofia, ela opera como uma porta para a cultura do
passado e para a reflexão sobre questões decisivas de nossa própria época.
Envolve a dignidade
da concepção de uma existência refletida. Sócrates já dizia que “uma vida sem
reflexão, sem exame, não vale a pena ser vivida”.
Cabe ressaltar ainda
que, até poucos séculos, estava reunido no que se chamava então de Filosofia um
conjunto extraordinário de problemas que abarcavam, por exemplo, conhecimentos
da Ciência, das Artes e da Teologia.
Assim, em grande
medida, a história da filosofia é também a história desses saberes e dos
problemas que lhe são constitutivos.
Além disso,
conhecimentos de ética, lógica, argumentação, política, estética, filosofia da
religião, filosofia da ciência etc., são certamente indispensáveis para a
compreensão refletida da própria posição no mundo, que abre possibilidade para
projetos pessoais e profissionais criativos e emancipados, decisivos para a
inserção esclarecida na vida social e na comunidade política.
Ademais disso, a
disciplina Filosofia tem sido bem sucedida em seus incontáveis benefícios no
que diz respeito ao aprimoramento da capacidade de argumentação, de raciocínio,
de escrita, de reflexão e de crítica.
A oposição ao ensino
das disciplinas de Filosofia e de Sociologia parece possuir uma motivação
claramente obscurantista, para me expressar em um oximoro.
Trata-se de atender
os movimentos políticos que identificam, por ignorância ou maledicência, o
ensino dessas disciplinas com doutrinação político-partidária, desconsiderando
a pluralidade das respectivas áreas, como se pode constatar na diversidade de
temas, problemas e autores abordados nos encontros nacionais de pesquisa nessas
áreas.
Esses movimentos
advogam uma seletividade no ensino, com exclusão de determinados conteúdos, de
modo que acabam por advogar pela conversão da educação em doutrinação.
Doutrinar é
restringir a perspectiva, é adestrar, em vez de enriquecer a imaginação e
ampliar a compreensão, o que pressupõe considerar o número mais amplo possível
de pontos de vista.
Dada a fragilidade
dos argumentos em favor da MP 746, agora convertida em lei, e dadas as medidas
tomadas pelo atual governo na área de educação, cabe perguntar se o que está em
jogo não é antes o acesso à universidade pública pelos estudantes oriundos da
escola pública.
Toda a fala em torno
da reforma deixa entrever o antigo projeto de conservar o Ensino Médio como
teto da formação dos jovens pobres, de quem se espera no máximo a formação
técnica especializada e no mínimo o domínio de Português e de Matemática
necessário ao exercício de sua atividade profissional subalterna.
Está em jogo o
extermínio do princípio liberal da igualdade de oportunidades e da recompensa
pelo esforço e pelo mérito, ou ainda daquilo a que se refere Michel Foucault
quando trata do poder sobre a vida centrado no corpo: “no seu adestramento, na
ampliação de suas aptidões, na extorsão de suas forças, no crescimento paralelo
de sua utilidade e docilidade, na sua integração em sistemas de controle
eficazes e econômicos”.
O projeto consiste
em formar pessoas úteis e dóceis, ou em formar até certo ponto e apenas em
certas áreas. Assim, dentre as habilidades e competências esperadas dos jovens,
não são admitidos saberes que coloquem em primeiro plano análise, reflexão,
crítica e imaginação.
É o caso de
continuar suspeitando de que somos e sempre fomos muito mais coloniais que
liberais. Temos de, como disse, começar a suspeitar de que na reforma do ensino
médio o que está em jogo, com a precarização do ensino público, é o acesso à
universidade pelos egressos da escola pública – e a recondução da universidade
a sua tarefa histórica de legitimar as posições sociais previamente
determinadas pelas respectivas condições econômicas.
É o caso de
suspeitar que os defensores desse projeto obscurantista e colonial têm
realmente boas razões para se opor ao estudo da Filosofia e da Sociologia.
* Adriano Correia é
professor da Faculdade de Filosofia da UFG e presidente da Associação Nacional
de Pós-graduação em Filosofia (Anpof) .
Tânia Rêgo / Agência Brasil/Fotos Públicas |
Desde que foi
anunciada a reforma do Ensino Médio pelo governo de Michel Temer, por meio da
Medida Provisória 746, tenho lembrado com muita frequência da observação da
pensadora Hannah Arendt (1906-1975), contida em seu único texto dedicado
especificamente ao tema da educação.
Por Adriano
Correia*, na Carta Capital
Intitulado A crise
na educação e reunido na obra Entre o passado e o futuro (Perspectiva), Arendt
tece uma consideração basilar sobre o sentido da formação que transcrevo na
íntegra:
“A educação é o
ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a
responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria
inevitável não fosse a renovação e a vinda dos novos e dos jovens.
A educação é,
também, onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não
expulsá-las de nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos, e tampouco
arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e
imprevista par nós, preparando-as em vez disso com antecedência para a tarefa
de renovar um mundo comum”.
Haveria um vínculo
estreito, portanto, entre educação e responsabilidade, tanto para com a
renovação do mundo quanto com o acolhimento dos mais jovens nele.
Na insistente
propaganda em favor da reforma, o Ministério da Educação busca convencer os
jovens de que a razão de ser da MP é a liberdade de escolha.
Isto é, a
flexibilização do currículo, de modo que o estudante possa decidir estudar
apenas o que gosta – e, principalmente, não estudar o que aos 13 anos acha que
não gosta.
O argumento
consiste, portanto, em afirmar que o Ensino Médio precisa ser modificado com
urgência (uma vez que tal modificação foi proposta por medida provisória) e sem
necessidade de discussão com a comunidade envolvida (estudantes, pais e
professores), já que seria consenso que ele precisa ser tornado atraente para
que os jovens não evadam da escola.
Seria o caso de o
Ministério da Educação indicar com base em que informações chegou à conclusão
de que a evasão escolar no nível médio se deve ao desinteresse dos estudantes
pelos conteúdos que têm de estudar.
As medidas do atual
governo para a área da educação até agora consistiram em corte de gastos, teto
orçamentário e desvinculação de receitas, mitigação da assistência estudantil
universitária, projeto de reforma do Enem (com dissociação do exame do acesso à
universidade) e a medida provisória que visa reformar o Ensino Médio.
A última, com
flexibilização do currículo, eliminação de disciplinas, ampliação da carga
horária visando o ensino integral (milagrosamente com restrição orçamentária),
ênfase em formação técnica e a admissão por “notório saber” de profissionais
não formados para a docência.
Este conjunto de
medidas, a ausência de qualquer projeto de valorização profissional do
professor e a fragilidade da argumentação em favor da medida provisória provoca
para a seguinte questão: o que está realmente em jogo?
As motivações mais
profundas dessas medidas estão explicitadas? Ou, para dizer com Kant: será que
as reais motivações para a reforma poderiam ser ditas em público (podendo ser,
assim, política, jurídica e moralmente justificáveis)?
O Ensino Médio é
parte da educação básica, e esta formação inclui, dentre outros aspectos o
acesso a conhecimentos que permitam uma maior compreensão de sua existência e
de seu lugar na vida social e política e a iniciação da preparação para uma
futura atividade profissional, sem restrição à possibilidade de aprofundamento
da formação em nível universitário.
Além do fornecimento
de condições para que o estudante não seja privado do que foi engendrado ao
longo do tempo nas ciências, nas técnicas, nas artes, no pensamento, na
história.
Subjaz à exigência
de uma formação básica o princípio republicano de que a comunidade política
deve fornecer aos estudantes as condições elementares para construírem sua vida
em pluralidade, de modo esclarecido e refletido, em harmonia com sua dignidade
pessoal e com sua condição de cidadão.
É o caso, portanto,
de não dissimular como liberdade o que é restrição e de não expulsar os mais
jovens da comunidade política e de cultura de que fazem parte deliberada ou
involuntariamente, independentemente das prioridades definidas por seus afetos
adolescentes – os quais, como bem sabem os professores e pais, deveriam ser
tomados como parte da sua formação no período da educação básica.
Seria apenas
irresponsável ou dissimulador considerar bem compreendidos, para dizer com
Tocqueville, os interesses próprios dos adolescentes que ingressam no Ensino
Médio. A chance de uma opção equivocada por um itinerário formativo aumentar a
evasão tem de ser levada muito a sério.
É muito difícil
imaginar como estes objetivos poderiam ser alcançados plenamente sem que os
estudantes sejam formados em Língua Portuguesa, Matemática e Língua
Estrangeira, mas também História, Artes, Geografia, Educação física, Sociologia
e Filosofia.
Filosofia x
obscurantismo
Tratando
especificamente da Filosofia, ela opera como uma porta para a cultura do
passado e para a reflexão sobre questões decisivas de nossa própria época.
Envolve a dignidade
da concepção de uma existência refletida. Sócrates já dizia que “uma vida sem
reflexão, sem exame, não vale a pena ser vivida”.
Cabe ressaltar ainda
que, até poucos séculos, estava reunido no que se chamava então de Filosofia um
conjunto extraordinário de problemas que abarcavam, por exemplo, conhecimentos
da Ciência, das Artes e da Teologia.
Assim, em grande
medida, a história da filosofia é também a história desses saberes e dos
problemas que lhe são constitutivos.
Além disso,
conhecimentos de ética, lógica, argumentação, política, estética, filosofia da
religião, filosofia da ciência etc., são certamente indispensáveis para a
compreensão refletida da própria posição no mundo, que abre possibilidade para
projetos pessoais e profissionais criativos e emancipados, decisivos para a
inserção esclarecida na vida social e na comunidade política.
Ademais disso, a
disciplina Filosofia tem sido bem sucedida em seus incontáveis benefícios no
que diz respeito ao aprimoramento da capacidade de argumentação, de raciocínio,
de escrita, de reflexão e de crítica.
A oposição ao ensino
das disciplinas de Filosofia e de Sociologia parece possuir uma motivação
claramente obscurantista, para me expressar em um oximoro.
Trata-se de atender
os movimentos políticos que identificam, por ignorância ou maledicência, o
ensino dessas disciplinas com doutrinação político-partidária, desconsiderando
a pluralidade das respectivas áreas, como se pode constatar na diversidade de
temas, problemas e autores abordados nos encontros nacionais de pesquisa nessas
áreas.
Esses movimentos
advogam uma seletividade no ensino, com exclusão de determinados conteúdos, de
modo que acabam por advogar pela conversão da educação em doutrinação.
Doutrinar é
restringir a perspectiva, é adestrar, em vez de enriquecer a imaginação e
ampliar a compreensão, o que pressupõe considerar o número mais amplo possível
de pontos de vista.
Dada a fragilidade
dos argumentos em favor da MP 746, agora convertida em lei, e dadas as medidas
tomadas pelo atual governo na área de educação, cabe perguntar se o que está em
jogo não é antes o acesso à universidade pública pelos estudantes oriundos da
escola pública.
Toda a fala em torno
da reforma deixa entrever o antigo projeto de conservar o Ensino Médio como
teto da formação dos jovens pobres, de quem se espera no máximo a formação
técnica especializada e no mínimo o domínio de Português e de Matemática
necessário ao exercício de sua atividade profissional subalterna.
Está em jogo o
extermínio do princípio liberal da igualdade de oportunidades e da recompensa
pelo esforço e pelo mérito, ou ainda daquilo a que se refere Michel Foucault
quando trata do poder sobre a vida centrado no corpo: “no seu adestramento, na
ampliação de suas aptidões, na extorsão de suas forças, no crescimento paralelo
de sua utilidade e docilidade, na sua integração em sistemas de controle
eficazes e econômicos”.
O projeto consiste
em formar pessoas úteis e dóceis, ou em formar até certo ponto e apenas em
certas áreas. Assim, dentre as habilidades e competências esperadas dos jovens,
não são admitidos saberes que coloquem em primeiro plano análise, reflexão,
crítica e imaginação.
É o caso de
continuar suspeitando de que somos e sempre fomos muito mais coloniais que
liberais. Temos de, como disse, começar a suspeitar de que na reforma do ensino
médio o que está em jogo, com a precarização do ensino público, é o acesso à
universidade pelos egressos da escola pública – e a recondução da universidade
a sua tarefa histórica de legitimar as posições sociais previamente
determinadas pelas respectivas condições econômicas.
É o caso de
suspeitar que os defensores desse projeto obscurantista e colonial têm
realmente boas razões para se opor ao estudo da Filosofia e da Sociologia.
* Adriano Correia é
professor da Faculdade de Filosofia da UFG e presidente da Associação Nacional
de Pós-graduação em Filosofia (Anpof) .