Ainda
que o episódio não tire votos de Bolsonaro, há pouca margem para que os temas
desta reta final da campanha sejam pautados pelo presidente.
No final da década de 1970, com a anistia
política e a volta do pluripartidarismo ao Brasil, a corrente trabalhista
rachou de vez. De um lado, a ala encabeçada pela deputada fluminense Ivete
Vargas. De outro, o grupo liderado pelo ex-governador gaúcho Leonel Brizola.
Declaravam-se, ambos, herdeiros do histórico PTB, o Partido Trabalhista
Brasileiro, de Getúlio Vargas e João Goulart.
Sem
acordo, cada parte tratou de viabilizar seu próprio partido trabalhista e
reivindicar, junto à Justiça Eleitoral, a histórica sigla PTB. A decisão coube
ao general Golbery do Couto e Silva, chefe da Casa Civil no governo João
Batista Figueiredo, que não tinha o menor interesse em fortalecer um opositor
do porte de Brizola. Assim, em 12 de maio de 1980, por ordem de Golbery, o TSE
(Tribunal Superior Eleitoral) entregou a Ivete, sobrinha-neta de Vargas, a mais
simbólica das marcas trabalhistas.
Com
o fim do bipartidarismo, a ditadura militar visava à divisão das forças
oposicionistas, até então concentradas no MDB. O destino dos trabalhistas
seguiu o script do regime.
Enquanto Brizola se credenciou ainda mais como uma referência do campo
democrático e progressista, Ivete logo costurou acordos com o regime e mostrou
que o “novo” PTB tinha pouco em comum com o velho Partido Trabalhista.
Quarenta
e dois anos depois, o PTB, livre de qualquer resquício trabalhista, a não ser
pelo nome e pela sigla, lançou a candidatura do ex-deputado Roberto Jefferson à
Presidência da República. Líder máximo do partido nas últimas décadas,
Jefferson adotou, como Ivete, uma linha mais pragmática e menos ideológica.
Governista por excelência, o PTB foi base das gestões Collor, FHC, Lula, Temer
e Bolsonaro.
Em
2005, no episódio do “mensalão’, ele rompeu com o governo e usou as tribunas à
sua disposição – na imprensa e no parlamento – para tentar chantagear Lula. Não
teve sucesso. O STF (Supremo Tribunal Federal) o condenou por corrupção passiva
e lavagem de dinheiro, enquanto a Câmara Federal cassou seu mandato. No ano
seguinte, Lula se reelegeu ao Planalto. O ex-deputado, com a condenação, está
inelegível até dezembro de 2023.
Jefferson
continuou a controlar o PTB com mão de ferro, mas parecia condenado ao segundo
plano da política. Cada presidenciável do PSDB a receber seu apoio, nas
eleições 2010, 2014 e 2020, não escondia o constrangimento nas cenas e fotos
com o aliado de ocasião. O PTB, oscilando entre 22 e 25 deputados no período,
era fonte significativa de tempo de TV para os candidatos majoritários.
Mas
o partido fundado por Ivete Vargas começou a regredir, passando de dez
deputados federais eleitos em 2018 a apenas um em 2022. Talvez para compensar o
encolhimento de seu capital político, Roberto Jefferson abraçou o bolsonarismo
e se tornou porta-voz de pautas conservadoras, ultraliberais e autoritárias.
Quando
atos antidemocráticos – que se voltavam, acima de tudo, contra o STF – ganharam
as ruas em 2020 e 2021, muitos políticos e empresários procuraram apagar suas
digitais. Não foi o caso de Jefferson, que parecia descontrair-se com a volta
aos holofotes. Em vídeos e postagens nas redes sociais, sem meias palavras, ele
ameaçou abertamente ministros do Supremo.
Em
agosto do ano passado, a pedido da Polícia Federal, Jefferson foi preso.
Pesavam contra ele acusações de nada menos que 13 crimes. Após passar cinco
meses encarcerado no presídio de Bangu 8, o ex-deputado teve a pena
flexibilizada para prisão domiciliar, mediante algumas condições – as chamadas “medidas
cautelares”. O uso das redes sociais, por exemplo, estava vetado.
Por
tudo isso, sua campanha ao Planalto surpreendeu até aliados no PTB. A cassação
da candidatura era questão de tempo – Jefferson nem sequer pôde comparecer a
convenção que aprovou a chapa. Em 1º de setembro, por unanimidade, o TSE barrou
a farsa, o que levou o PTB a indicar o desconhecido Padre Kelmon, vice de
Jefferson, para substituí-lo.
Se
no primeiro turno Kelmon despontou como linha auxiliar da campanha de Bolsonaro
à reeleição, com um discurso ultradireitista e provocações a Lula, foi
Jefferson quem roubou a cena no segundo turno. Ele rompeu o silêncio no sábado
(22), ao divulgar uma gravação nas redes em que, entre outros impropérios,
difama a ministra Carmen Lúcia, do STF. Além de chamar a ministra de “Carmen
Lúcifer”, Jefferson disse que ela “lembra aquelas prostitutas, aquelas
vagabundas arrombadas”.
Ofender
ou até ameaçar membros do Supremo é um dos esportes prediletos dos
bolsonaristas. A convocação do próprio presidente para os atos golpistas de 7
de Setembro, em 2021 e 2022, tinha como eixos “ultimatos” a ministros da Corte.
Porém, Bolsonaro recorreu a um tom moderado e calculado no segundo turno, a fim
de diminuir a rejeição a seu nome e melhorar suas intenções de votos, sobretudo
entre indecisos. A fala de Jefferson destoou não apenas no tom chulo – mas
também no contexto de aparente distensão.
Esses
ingredientes garantiram que no domingo (23), a uma semana do segundo turno,
Jefferson se tornasse o homem-bomba de Bolsonaro nesta eleição. A Polícia
Federal solicitou e o STF autorizou a revogação de sua prisão domiciliar.
Quando integrante da PF tentaram executar a ordem, o ex-deputado lançou tiros
de fuzil e granadas contra policiais. “Não vou me entregar porque acho um absurdo.
Chega”, disse Jefferson.
Em
meio a tamanho pandemônio, a base bolsonarista, em geral unida em momentos de
confronto, cindiu-se. Uns tratavam Jefferson como herói, outros temiam o
desgaste para a campanha de Bolsonaro. Após oito horas, Jefferson acabou por se
render. Indiciado por quatro tentativas de homicídio, ele voltou para Bangu 8.
Mas o escândalo segue vivo – a campanha de Lula já produziu materiais que cotam
o caso.
A
crise é desastrosa para a campanha bolsonarista porque joga o presidente numa
espécie de “escolha de Sofia”, em que qualquer alternativa pressupõe
sacrifícios e perdas. A princípio, ao comentar o fato, Bolsonaro criticou o
ex-deputado, mas cutucou o Judiciário. Ademais, ao dizer não tinha nem mesmo
uma foto ao lado do aliado, ele foi de imediato contestado por jornalistas e
internautas, que inundaram a internet com imagens de encontros entre os dois
correligionários.
O
presidente ainda orientou o ministro da Justiça, Anderson Torres, a ir à casa
de Jefferson para mediar as negociações, o que desagradou à Polícia Federal.
Membros da corporação viram na ação presidencial um “teatro” para reduzir
danos, não para resolver efetivamente o problema – tanto que o ministro não se
dirigiu ao local.
Num
segundo momento, o tom de Bolsonaro foi de condenação explícita a Jefferson, a
quem o presidente chegou a chamar de “bandido”, não necessariamente por
descumprir ordem judicial, mas por “atirar em policiais”. A coordenação da
campanha à reeleição detectou um amplo rechaço da população ao atentado contra
a Polícia Federal.
“No Twitter,
60% das manifestações no domingo sobre o caso foram contra a dupla, segundo a
Arquimedes. Nos 15 mil grupos públicos de WhatsApp monitorados pela Palver, o
atentado teve grande repercussão negativa”, registrou o jornalista José Roberto
de Toledo, no UOL. “As palavras mais
associadas a Roberto Jefferson foram ‘Bolsonaro’ e ‘polícia’.”
Em
sabatina à TV Record, na noite de domingo, Bolsonaro tentou, de modo afoito e
inútil, associar Jefferson a Lula e ao PT. Uma gravação do próprio presidente o
desmente. “Tenho uma longa história com o Roberto Jefferson também, já fui do
PTB”, diz ele em vídeo que voltou a circular na tarde de domingo. “Obviamente,
partido que nos apoia estará junto conosco. Ou melhor, continuará junto conosco
ao longo desse ano e de outros anos também.”
Em
2021, Bolsonaro indultou o ex-deputado Daniel Silveira (PTB), que foi condenado
pelo STF. É possível que o presidente use a mesma cartada com Jefferson – mas
não antes da eleição. Com a busca do voto de eleitores indecisos, essa saída
está, por ora, fora de cogitação.
Ainda
que o episódio não tire votos de Bolsonaro – e o Ipec aponta que suas intenções
de votos seguem estáveis –, há pouca margem para que os temas desta reta final
da campanha sejam pautados pelo presidente. Não se pode sacudir demais um
carro de viagem quando um homem-bomba está a bordo. Pior: é preciso torcer para
que o homem-bomba colabore.
Para
duelar com Lula, Bolsonaro já tentou governadores, cantores sertanejos,
jogadores de futebol, influenciadores e outros atalhos. Nenhuma declaração de
voto, por si só, é tão decisiva. Ainda assim, Roberto Jefferson faz valer o
contraponto entre dois provérbios que revelam o papel do indivíduo nos grandes
acontecimentos: uma andorinha só não faz verão, mas um único inseto é capaz de
destruir a plantação.
Fonte: vermelho.org.br
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