
O filósofo austríaco Karl Popper
Foto: reprodução
A história como ciência, escreveu Carr, é um estudo de causas. Ele
criticou Karl Popper por sua reação contra o marxismo, que transformou num dos
seus principais alvos nos livros “Lógica da Pesquisa Científica” e “A miséria
do historicismo” (ambos da década de 1930). Popper viu como uma limitação, nos
pensamentos de Hegel e Marx o que chamou de historicismo, como caracterizou a
filosofia da história de ambos, e os considerou deterministas (Carr: 1982).
Por José Carlos Ruy*
O chamado historicismo é uma forma de pensar partilhada por aqueles que
acreditam haver objetivos prévios ou causas finais (a chamada teleologia, isto
é, o estudo dos fins) que a história persegue – objetivos ou causas finais
atribuídos a ela por alguma potência exterior (deus, destino, natureza, não
importa o nome que tenha) e que a guiaria, à margem da experiência humana
concreta.
Essa crença distorce o esforço pela compreensão do sentido do
desenvolvimento histórico e das tendências latentes no movimento da sociedade,
cujo desenrolar depende fundamentalmente da ação prática dos homens.
Mesmo assim quase sempre os
historicistas frequentam o campo daqueles que procuram compreender as leis do
desenvolvimento para poder intervir nele.
Sérgio Buarque de Holanda, que foi um democrata, definiu os adversários
do historicismo como anti-democratas. Ele criticou autores conservadores, entre
eles Martin Heidegger, lembrando que a “linguagem de alguns desses autores
aparenta-se, não raro, à dos teóricos do nacional socialismo”, do nazismo,
regime que a maioria deles apoiou (Holanda: 1979).
O alvo da crítica de Popper são as tentativas de buscar no conhecimento
da história fundamentos para mudar a vida social. Acusa os historicistas de se
voltarem “não apenas para trás, mas também para a frente, para o futuro”, para
“o estudo das forças atuantes e principalmente das leis do desenvolvimento
social”, em busca de leis “universalmente válidas” que sejam “leis de
transformação, de processos, de desenvolvimentos”. Buscam uma “ideia geral das
grandes propensões, ao longo de cujas linhas as estruturas sociais sofrem
mudanças”. Acusa-os de querer “compreender as causas desse processo, a forma de
operar das forças responsáveis pela transformação. Devem tentar formular
hipóteses acerca das propensões gerais, subjacentes ao desenvolvimento social,
e isso para que os homens, deduzindo profecias a partir dessas leis, possam
ajustar-se a alterações que se avizinhem” (Popper: 1991). Mais clareza contra
qualquer mudança histórica e social é impossível! Popper conclui investindo
contra a tese de Marx segundo a qual “os filósofos interpretaram o mundo; agora
cabe transformá-lo” (Marx: 1976). Inverte e limita o significado desta frase:
“o historicista não pode mais do que interpretar o desenvolvimento social e
favorecê-lo de múltiplas maneiras; ninguém pode alterá-lo” (Popper: 1991).
Em larga medida a ideia de que a história não é uma ciência e é alheia à
ação prática dos homens volta-se principalmente contra o marxismo. Se a
história não é ciência, se está mais para a narrativa e a literatura do que
para o conhecimento objetivo, não tem sentido esperar que ela, como ciência,
fundamente qualquer tentativa de intervenção humana para alterar seu curso e
mudar a sociedade. Esta é a principal consequência das visões da história
examinadas até aqui.
Consideração não científica que está presente, por exemplo, mesmo na
obra de Fernand Braudel, um ícone da historiografia do século 20. Em uma
entrevista de 1985 o mestre da Ecole des Annales acusou Marx de se equivocar
“mais do que se acredita quando afirmou que os homens fazem a História: seria
melhor dizer que a História faz os homens. Eles a padecem” (Braudel: 1985). “O
social, a sociedade, podem ser mudados pela vontade política?” – perguntou,
dizendo que há “uma grande diferença entre uma mudança que se faz por si mesma,
por um movimento endógeno, pela pressão da realidade, e uma mudança calculada
de antemão” uma vez que a “dificuldade, quando se fala do social, é que ele
escapa a qualquer definição clara e convincente” (Braudel: 1992).
Braudel empregou uma metáfora que indica os limites da noção de
estrutura. Nada pode mudar, diz, já que a sociedade é como “um prédio de vários
andares. Mudam os ocupantes, permanecem os andares”. Nas escadas desse prédio
ocorre a luta de classes que opõe os trabalhadores (“sindicalistas”), que
sobem, aos atuais ocupantes. Braudel pergunta: “Chegarão lá?” E responde:
talvez, mas somente a longo prazo pois as “verdadeiras mudanças, as que
durarão, jamais se improvisam de um dia para o outro. A história profunda anda
em marcha lenta”, afirmou. Podem mudar os ocupantes do “prédio” mas ele
próprio, como estrutura metafórica da sociedade, não muda. “O que quer que o
futuro nos prometa, encontraremos a permanência da escada, a afirmação da
hierarquia, o leque aberto das remunerações” (Braudel: 1992).
Neste texto Braudel reconhece a
realidade da luta de classes e a lamenta; faz também a crítica, correta, daqueles
que imaginam ser possível moldar a história de acordo com a vontade de um
líder, um partido, um governo. Mas se engana quando supõe que a mudança não
pode ser feita pela ação coletiva, organizada e consciente dos homens – esta é
a contradição, que se manifesta no fazer da história, entre a vontade
individual e a ação coletiva. As sociedades são hierarquizadas, ele diz, e “a
luta de classes e as mil realidades que nela se integram estão sempre em ação”
e não deixam de existir, sendo “fogo debaixo da cinza, nunca extinto”. É um
perigo e uma salvaguarda que não existiriam “se a sociedade in aeternum fosse
obediente” (Braudel: 1992).
Referências
Braudel, Fernand. Entrevista ao “Jornal da Tarde”, 7 de setembro de
1985.
Braudel, Fernand. “Reflexões
sobre a história”. São Paulo, Martins Fontes, 1992.
Carr Edward H. “Que é história?” Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982
Holanda, Sérgio Buarque de (org.). “O atual e o inatual em L. von
Ranke”. In “Leopold von Ranke: história.” São Paulo, Ática, 1979
Marx, Karl. “Tesis sobre Feuerbach”. In Marx/Engels, “Obras escogidas”,
T. II, Madri, Editorial Ayuso, 1976
Popper Karl. “A sociedade aberta e seus inimigos”. São Paulo, Editora
Abril Cultural, 1980
Popper, Karl. “A miséria do Historicismo”. São Paulo, Cultrix, 1991
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As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal PCdoB
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* José Carlos Ruy é jornalista, tradutor e escritor
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